As ‘coincidências divinas’ no manejo da história parecem ser infindáveis. A vinda da corte portuguesa para o Brasil no ano de 1808, se deu por conta de fuga do assédio napoleônico na Europa, e mudou em definitivo as perspectivas para a colônia que, em 1822, se tornaria nação independente. Uma das políticas que ajudou a forjar a nação foi a abertura promovida pelo príncipe regente Dom João, favorecendo a imigração de europeus.

      Quanta ‘coincidência’: o ano de 1816 é marca de três fatores historicamente convergentes: início da vigência da nova sede da coroa portuguesa no Brasil, onde o Rio de Janeiro passou a ser a capital do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves; foi, também, ano inicial de severa fome e miséria em territórios alemães, aprofundada por rigoroso inverno; ainda, a necessidade detectada por Dom João em reforçar, para sua própria segurança, as forças militares no Brasil, elevado à condição de sede do reino. Assim é que em 16 de maio de 1818, Dom João assina o decreto estabelecendo oficialmente a primeira colônia suíça no Brasil, no estado do Rio de Janeiro; esses suíços ajudariam a formar uma cultura pecuária e agrária, além de fornecer elementos para a guarda imperial. Alguns historiadores chegam a mencionar ainda o intuito de “branqueamento” da população.

      Vários navios aportaram no Rio de Janeiro, desde 1816 e, notadamente, entre 1818 e 1819, trazendo especialmente suíços para se estabelecerem no novo solo. Alemães compelidos pelos reflexos da crise econômica em seu país também vieram, e estabeleceram, por iniciativa própria, algumas colônias no Brasil. Os suíços tinham a especialidade do manejo pecuário e da produção laticinista; alemães tinham especialidade no manejo agrário. As razões da concentração em imigração suíça e alemã estão ligadas às políticas colonialistas de nações européias como Inglaterra, França e Espanha, em contraste com as daquelas, mas fogem ao interesse do momento.

      Nos anos de 1820 a 1823 – período de turbulência em torno da independência, nenhum navio aportou em caráter oficial. Em 07 de janeiro de 1824, com o Brasil já império independente, aporta o primeiro navio de imigrantes alemães – o Argus; 284 alemães, entre colonos e militares, foram encaminhados para a região de Nova Friburgo, no estado do Rio Janeiro. Assim, os primeiros membros de famílias tais como Eller, Grieb (Gripp), Emmerich, Heringer, Klein, Schneider, Schwab, dentre muitas outras, passam a incorporar a história nacional.

      Depois do Argus, vinte e quatro outros navios se sucederam nos anos de 1824 até 1829, chegando ao Brasil com milhares de novos colonos; foram destinados não só ao estado do Rio de Janeiro, mas também ao estado de São Paulo e ao sul do país. Depois de novo hiato no tempo, chega ao Brasil, em 11 de novembro de 1837, o navio Justine; trazia mais 238 colonos, que foram endereçados a Petrópolis e a Nova Friburgo. Entre esses colonos alemães, os primeiros imigrantes de sobrenome Heckert: o casal Jakob Heckert[1] e sua esposa Anna Maria Kärcher[2] Heckert. Trata-se, comprovadamente, de sobrenome alemão com origens judaicas.

      Esse casal de agricultores, oriundo da cidade de Münster, na região alemã da Westfália (a Renânia-norte), estava unido pelo casamento desde 1811. Na viagem de vinda, já traziam oito filhos, sendo que o oitavo lhes nasceu provavelmente pouco antes de zarparem em Havre, na França. O segundo de entre esses filhos era Peter Joseph Heckert, nascido no ano de 1822 em Münster; portanto, chegou ao Brasil com 15 anos de idade. Casou-se ele em 1846 com Maria Elizabeth Schott (1827-1898).

      Como praticamente todos os nomes de famílias de origens camponesas alemãs, Heckert também é um sobrenome que remete a determinada atividade laboral predominante. As pesquisas mais acuradas apontam para a palavra heker, de origem Iídiche[3], que significa “açougueiro”; outras formas mais primitivas são hacker, haecker, hacher, haecher. Embora alguns linguistas também apontem para a possibilidade da atividade de lenhadores, sabe-se hoje que a maior probabilidade aponta para os profissionais do manejo das carnes comestíveis. Portanto, Heckert é um sobrenome típico de judeus askenazim, isto é, germânicos de origem judaico-eslava que ocuparam espaços europeus orientais, e migraram majoritariamente para a Alemanha[4] nos começos da era moderna.

      Foi do casamento de Peter com Maria Elizabeth Schott, já em solo brasileiro, que nasceu o pai do ‘vovô’ Ernesto, a saber, Felippe (ou Philipp) Eduard Heckert, em 23 de novembro de 1852, em São José do Ribeirão. Portanto, tal nascimento se deu quinze anos após a chegada do seu pai, vindo da Alemanha. Felippe era um dentre dez irmãos, filhos de Peter e Maria Elizabeth.

      Felippe Heckert se casou com Maria Elizabeth Stutz (1858-1970) em São José do Ribeirão, Rio de Janeiro. Ali tiveram seus oito filhos: Palmira Euphrasia (1878-1970), Ernesto José (1880-1969), Deoclécio, Edelmiro Felipe (1885-1957), Oscar Claudionor (1891-1957), Dolores Astrogilda (1895-?), Mathilde Cerlina (1897-1983), e Nair Ermelinda (1900-1994).  Felippe se deslocou de São José do Ribeirão, onde residia, para tomar parte, em fevereiro de 1926, no casamento da neta Eunice – a mãe de minha mãe, com Francisco Nora Horta Barbosa; depois disto, ainda viveu muitos anos.

      Felippe Eduard Heckert, neto do solitário pioneiro askenazim Jakob Heckert, faleceu em 9 de junho de 1969 na cidade de Nova Friburgo, RJ. A descendência Heckert, no Brasil oriunda de Jakob e Anna Maria Heckert, tem um expressivo contingente no estado do Rio de Janeiro, além de outros que se fixaram na Bahia, em Minas, no Espírito Santo, em São Paulo, em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul.

[1] Formas alternativas de “Heckert”: Hacker, Hechert, Heckart, Hechard. O dicionário de sobrenomes judaico-alemães inclui a forma Hacker  entre os sobrenomes alemães de origem judaica; em todas essas variantes onomásticas o significado é o mesmo: “açougueiro” ou, alternativamente, “lenhador”.
Ver Lars Menk, A Dictionary Of German-Jewish Surnames. Avotaynu, Bergenfield, NJ (USA): 2005 (796 páginas). Nota: avotaynu  é palavra hebraica transliterada, que significa “nossos pais”. A editora também publica uma revista especializada em genealogias de origem judaica, e é considerada a líder mundial na publicação de textos genealógicos judaicos. Lars Menk, cujo avô serviu à SA, a milícia secreta do nazismo na 2ª Guerra Mundial, é um genealogista alemão com ascendência judaica, laureado com o Obermayer German Jewish History Award em Berlim, em 2007; Menk descobriu-se descendente de judeus em suas pesquisas.

[2] Esse sobrenome – Kärcher – também é encontrado nas formas “Kerger”, ou ainda “Hergt”.

[3] Iídiche é o dialeto alemão carregado de vocábulos e cultura de origem judaico-eslava. No século XIV, os pesquisadores identificam a Áustria como um dos países matriciais para a comunidade falante do Iídiche. Em outras palavras, é a linguagem dos judeus-eslavos da Diáspora.

[4] Vide https://www.4crests.com/heckert-coat-of-arms.html#:~:text=This%20surname%20of%20HECKERT%20was,’holtsheker’%20(woodcutter).

Os teus olhos me viram a substância ainda informe, e no teu livro foram escritos todos os meus dias, cada um deles escrito e determinado, quando nem um deles havia ainda” (Salmo 139.16)

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